quinta-feira, 8 de abril de 2010

O "Deus" do Karatê

História longa e real...mas acho interessante! Boa leitura e agradeço seus comentários!


Capitulo I

Saímos de casa, meu irmão e eu, a pedido de minha mãe, para comprar carne para o almoço. Eu devia ter uns 12 ou 13 anos naquela época, onde as preocupações não eram muitas alem das obrigações escolares e algumas relacionadas à casa. O açougue ficava a menos de 2 quadras de distância e convidei meu irmão para vir junto.

Na saída do açougue, fomos abordados por um homem em uma moto, que nos perguntou se conhecíamos uma rua ali nas redondezas. Respondi a ele que não sabia onde era (e de fato eu não sabia mesmo), mas também com a intenção de não alongar muito a conversa, afinal de contas éramos duas crianças falando com um estranho. Mas ele insistiu:

- Vocês sabem onde tem uma loja de kimonos por aqui?

Como nós praticávamos o karatê naquela época, sabíamos o que era um kimono. Mas não conhecíamos loja alguma, e fomos nos despedindo...

- Não sei, não conheço.

- É que estou procurando kimonos – insistiu ele – e também lonas para barracas de acampamento. Eu sou membro de uma academia de karatê e estamos organizando uma viagem com acampamento – insistiu ele...

- Ah, a gente também “faz” karatê – comentou inocentemente meu irmão.

- Puxa vida! Que legal! – disse o sujeito, já desligando a moto...

Seguiram-se então uma série de perguntas que alongaram demais a nossa conversa. “Qual academia? Há quanto tempo? Que estilo de karatê? Vocês fazem competições?”... e daí por diante. E eu já preocupado com o horário, pois minha mãe esperava (pela carne e pelos filhos) para o almoço. Tratei de dispensar o sujeito, mas ele veio com o convite:

- Vocês gostariam de ir conhecer a nossa academia?

- Claro! Será um prazer – respondi – mas temos que falar com a nossa mãe antes, me dá o endereço que a gente aparece lá.

Ele tirou um cartão da carteira e anotou o endereço, dizendo “espero vocês lá, hein?”

Fomos pra casa. No caminho, dei a devida bronca no meu irmão, por ter aberto a boca na hora errada. Em casa, minha mãe já preocupada pela demora, mas enfim, tudo foi superado sem problemas...

Capítulo II – O segundo encontro (no viaduto)

Cerca de 2 ou 3 meses depois do primeiro episódio, caminhava eu em direção à escola, no início de uma tarde, para uma aula de Educação Física. Ao atravessar por cima de um viaduto na Av. 23 de Maio, fui abordado por um outro cara em uma moto, pedindo uma informação:

- Você sabe onde fica a rua “X”? (não me lembro o nome)

- Não, infelizmente não conheço – respondi.

- Você conhece alguma loja de kimonos?

Pronto! Imediatamente pensei “puxa vida, outro deles?”. Não era possível ver isso, a mesma abordagem, de moto, o mesmo diálogo...mas ele continuou:

- É que estamos organizando um acampamento pra academia onde eu faço karatê.

Eu não queria acreditar no que estava ouvindo, mas era verdade, até que ele atacou:

- Aliás, você não é o Ronaldo?

- Não, acho que você está enganado...- aí já fiquei com medo que estivessem me seguindo.

O cara então pediu desculpas e foi embora. Que alívio!!!

Capitulo III – A visita inesperada

Se não me engano, cerca de 3 ou 4 meses após o segundo episódio, eu estava em casa, numa tarde, jogando videogame com meu irmão.

Lá pelas 2 da tarde, tocou a campainha de casa, e como de costume esperamos que minha mãe fosse atender.

Escutei ao fundo uma voz que perguntava

- O Ronaldo mora aqui?

Minha mãe então me chamou, dizendo “visita pra você”. Qual não foi minha surpresa ao ver o sujeito da primeira moto, ali, na porta da minha casa!!!!!

- Ronaldo!! Ainda bem que te encontrei...lembra de mim? Da academia de karatê...

- Lembro sim...mas... – eu e meus 13 anos – como você achou minha casa?

- Ah, eu me lembro que nos conhecemos ali na esquina, eu estava te perguntando sobre lojas de kimonos e você me disse que treinava karatê...

- Sim, mas, ...

- Olha, eu trouxe aqui umas fotos do nosso acampamento, lembra? Estávamos organizando uma excursão da academia e....

- Ronaldo, de onde vocês se conhecem? – perguntou minha mãe, já curiosa e ao mesmo tempo preocupada.

- Ah, ele estava outro dia procurando uma loja, e descobrimos que ambos fazem karatê...

- Então Ronaldo – continuou ele – olha só as fotos, que legal, teve acampamento, escalada, montanhas... – e me mostrava e explicava cada foto, que eu mal tinha condições de prestar atenção ao ver minha mãe cada vez mais assustada (e meu irmão entretido no videogame, estrategicamente ignorando tudo aquilo).

- Que legal, que bom que o acampamento tenha sido legal – tentei terminar o assunto.

- Pois é Ronaldo, talvez tenhamos um outro daqui uns 2 meses...mas enquanto isso, você não quer ir visitar nossa academia? Quem sabe mostrar para nós como a sua academia treina, para vermos as diferenças entre o que você faz...o shoto-kan e o que nós fazemos, o kyokushin...

- É, quem sabe um dia iremos, e...

- Legal! Olha, sábado vai ter um treino pela manhã e seria muito legal se você pudesse ir...

- Não sei se minha mãe vai deixar e... – putz...minha mãe tinha voltado para a cozinha – vou ter que falar com ela depois.

- Legal, vamos esperar vocês lá...você também viu Ricardo?

- Hã...eu? O quê? – meu irmão fingiu de distraído com o videogame.

Capítulo IV – O treino

Na 6ª feira anterior ao treino, o telefone em casa ainda tocou, e era o sujeito querendo confirmar nossa presença no treino. Minha mãe condicionou nossa ida à presença de um outro grande amigo, o Edmilson, ao tal treino. Deixamos o endereço da academia com ela.

Liguei para o Edmilson e contei a história a ele, e o convenci a ir à academia, mais para “me ajudar” do que para curtir a visita em si...mas no fim ele topou.

No sábado, fomos para a academia. Estrategicamente, “esquecemos” nossos kimonos em casa, na intenção de apenas assistir (e não participar) os treinos deles.

Chegando lá, procurei pelas pessoas conhecidas, e nos pediram para esperar em uma sala ao lado da recepção. Em seguida, apareceu o cara da segunda moto (aquele que eu falei que eu não era o Ronaldo).

- Ronaldo? Que legal encontrar você aqui...aliás, não foi você que eu encontrei outro dia ali perto da 23 de maio???

- Eu? Hmm, er...é...acho que foi...

- Foi sim! Eu estava procurando uma loja de kimonos...que legal que você veio!

A esta altura, eu já me perguntava o que era que aqueles caras queriam comigo. O Edmilson, meu amigo, então, não entendia nada do que estava acontecendo...

- Ronaldo, você conhece esses caras?

- Eu não, mas por algum motivo todos eles me conhecem, e não tenho a menor idéia de onde...

- Mas esse cara aí lembrava muito bem de você e...

- “Ed”...não me faça perguntas difíceis. Não tenho a menor idéia de onde esse cara tem tanta familiaridade comigo.

Apareceu o sujeito da primeira moto, e da visita em casa:

- Oi Ronaldo! Que legal que vocês vieram! Me disseram que vocês viriam. Nosso treino já vai começar. Se vocês quiserem, o vestiário é ali e...

- Ah...olha, não trouxemos kimonos, e vamos só assistir. – tentei argumentar.

- Como não? Puxa...mas nós podemos emprestar kimonos a vocês – e chamou um dos colegas – olha, vamos conseguir 3 kimonos para eles aqui, eles são nossos convidados e vão treinar conosco.

Não tivemos como escapar. Pegamos os kimonos emprestados (ao menos estavam limpos). O meu devia ser uns 6 números maior e realmente eu “sobrava” dentro dele. Cheguei a propor ao meu irmão de vestirmos juntos um kimono só, e ele deu risada. Aliás, o Ricardo se divertia com aquela situação.

Fomos para o treino, com o Ed resmungando que não queria treinar. Começou o “aquecimento”, com o pessoal (umas 30 pessoas) correndo em volta do pátio da academia – na verdade era uma casa perto da Vila Mariana, com um quintal relativamente grande. O grupo já tinha uns exercícios ensaiados entre eles, e até uns “gritos de guerra” que faziam à medida que o líder do grupo entoava algumas palavras...

- “Avançar”...gritava ele.

- “Sempre!” – respondiam todos...

- “Recuar”...

- “Nunca!” – respondia o grupo...

O Ed, Ricardo e eu, totalmente perdidos, apenas correndo em fila indiana atrás do grupo. De vez em quando, o grupo parava para exercícios específicos: abdominais, polichinelos, saltos, enfim, coisas típicas de aquecimento para um treino. Tudo muito normal, até que o líder da fila abriu o portão da casa e saiu pela rua Sena Madureira correndo, e a fila atrás dele!

Aí, o Ed, Ricardo e eu achamos estranho...nós todos em kimonos emprestados (e 6 números maior), achamos que foi o maior “mico” que pagamos, ao sair pela rua gritando estas palavras de ordem, correndo descalços pelas calçadas, como parte de um aquecimento. O Ed, durante a corrida estava atrás de mim, falava a todo tempo em meu ouvido: “você vai me pagar por isso!”

Terminado o aquecimento, o lider do grupo reuniu todos e anunciou:

- Hoje temos 3 convidados aqui em nossa academia: Ronaldo, Ricardo e Edmilson, que treinam karatê shoto-kan e vão nos demonstrar algumas diferenças entre os estilos...na verdade, acho que seria ideal colocarmos um de nós para lutar com um deles. Que tal, Ronaldo?

- Bem...eu...é... – não sabia o que dizer.

- Então, vamos fazer um círculo aqui, vamos colocar o fulano para lutar com o Ronaldo. Logicamente, não queremos aqui golpes reais ou que ninguém se machuque, portanto vamos apenas simular algumas diferenças, e quem sabe o Ronaldo goste da nossa academia e possa vir a treinar conosco.

Fiz então uns 5 minutos de lutas e golpes simulados contra o meu “sparring”. Era ridículo: o cara devia ter uns 30 anos de idade, e eu com 13, “ensinando” toda minha técnica apuradíssima de um faixa-amarela a toda aquela comunidade. A cada golpe meu, metade do grupo aplaudia...e eu não entendia nada.

Me tornei sem querer um verdadeiro "Deus do karatê", o verdadeiro Sr Myiagui em pessoa, só que com 13 anos de idade...

Passada essa cena patética, fizemos outros exercícios junto com o grupo, e finalmente aquele martírio acabou. Fomos convidados a vir sempre na academia, adoraram nossa presença, blábláblá....

Capítulo V – O terceiro encontro

Acho que uns cinco meses depois do fatídico treino, estava eu ainda caminhando na Av Brigadeiro Luis Antonio, quando aparece um cidadão em uma moto e...

- Olá, boa tarde. Estou procurando uma loja de kimonos e...

Essa não! Era um terceiro integrante da “seita”...

- Olha, estou atrasado, não conheço.

- Ronaldo? Não é você quem esteve na nossa academia?

E agora? O que dizer a ele? Deu vontade de sair correndo....mas a primeira coisa que veio à cabeça é que não adiantaria, pois eles já sabiam onde eu morava.

- Sim, sou eu sim. Mas não conheço lojas de kimonos por aqui.

- Ah, não tem problema! Eu conheço uma não muito perto daqui que fica na...

- Mas eu não estou comprando kimonos – respondi – é você!!! Olha, preciso ir.

- Tudo bem! Olha, no mês que vem vamos fazer um acampamento, você não gostaria de ir?

- Sinceramente, não. Não gosto muito de acampamento – tive que inventar essa.

- Mas se você preferir, tem pousada lá, não precisa dormir na barraca.

- Olha, desculpe, não posso. Preciso ir. Até logo.

- Até a próxima!

Como assim até a próxima??? Então ele já sabia que haveria a próxima???

Capítulo VI – Anos depois...

Pois bem, acho que o último episódio havia ocorrido aos meus míseros 14 anos de idade. Aos 30 anos, já depois de muitas experiências na vida, este assunto estava totalmente encerrado e devidamente guardado na memória.

Não que eu me preocupasse com isso, mas havia sido até então uma série de coincidências que, toda vez que eu contava a alguém, nem eu acreditava. Em momento algum tive medo disso, mas ficava tentando entender a história para tentar achar algum ponto onde isso tivesse uma explicação lógica, e nada....

Estava eu em um laboratório médico, aos 30 anos de idade, esperando para realizar um exame de ressonância em meu joelho, que havia sido machucado em uma partida de futebol quando eu morava nos EUA. Em uma das vindas ao Brasil, resolvi procurar médico e laboratório para fazer a tal ressonância.

Na sala de espera, peguei um jornal e comecei a ler. Ao meu lado, sentou-se um homem, cerca de 15 anos mais velho que eu, e puxou a conversa...

- Nossa, que dia corrido hoje.

- É mesmo – respondi eu – hoje em dia, a gente nem nota o tempo passar... – típico assunto-vazio-de-sala-de-espera-de-laboratório.

- Eu acho que conheço você – disse o cara ao meu lado...

- Ah é? Não me lembro de você não – e realmente não lembrava.

- Você treina karatê?

- Não...não mais. Quer dizer, eu treinava há muito tempo atrás.

- Ronaldo? É esse seu nome?

- Sim...e você?

- Marcos. Nossa! Que coincidência encontrar você aqui. Eu treinava na Vila Mariana e...

- Ah...acho que me lembro – é claro que eu lembrava!

- Nossa, e você, o que tem feito?

- Ah, moro agora nos Estados Unidos, só estou aqui de passagem, e resolvi fazer uns exames – será que essa desculpa seria suficiente?

- Puxa, que legal! Eu ainda continuo treinando lá. A gente gosta muito, e quem sabe você poderia ir nos visitar...de vez em quando fazemos acampamentos e...

- “Sr Ronaldo?” – a enfermeira chamou.

- Sim. Olha, com licença, estou indo. Foi um prazer encontrá-lo, sucesso nos treinos e na carreira. A gente se vê por ai...

- Sem dúvida, vamos nos encontrar sim!

- - -

Não tenho a menor dúvida de que iremos. Aliás, depois dessa, não duvido de nenhuma coincidência!

Abraços

Ronaldo

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