sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O lado de cá do Texas (texto escrito em Jan/2004)

O lado de cá da fronteira - 22/01/04

Um ano no Texas, e agora já se vão quatro meses no México. Uma ótima experiência para poder dizer que as coisas são realmente diferentes.

A primeira coisa que me vem à cabeça é a gratidão que tenho por ter a oportunidade de experimentar essas coisas. Isso pode ser “piegas” para algumas pessoas, mas muito pouca gente sabe o quanto eu tive que lutar para chegar até aqui, e ainda tem mais por vir...mas a cada dia o sentimento de vitória é latente.

Primeiro, o “sonho americano”. Eu nunca tive muito essa idéia fixa de ir para os Estados Unidos, “fazer a América”, ganhar em dólar e poder realmente sentir que o meu trabalho valia dinheiro de verdade, ou que o próprio dinheiro tinha valor de verdade. O que mais me fascinava era o desafio de viver em uma outra cultura, aprender como as coisas são feitas, como as pessoas se relacionam, como as empresas fazem negócios. Tudo bem, os EUA são o lugar “perfeito” (se é que isso existe), se você pensar em termos de negócios, poder econômico, e certos aspectos da qualidade de vida.

Veio o Texas em minha vida. Lá, vi que existe um misto de ódio e inveja que os demais americanos têm em relação aos texanos. Muitos me diziam que “o Texas não é os EUA”... mas logo eu comecei a me questionar: se for assim, também pode-se dizer que “New York não é os EUA”, “Miami não é os EUA”, a Califórnia é diferente... enfim, se o Texas não é os EUA, então que diabos realmente representa este país? A resposta, a meu ver, é bastante simples: um pouco de cada um representa este país, pois trata-se essencialmente de uma nação de imigrantes, apesar de que muitos americanos negam isso.

Mas a contradição surge e se torna evidente quando eles mesmos se intitulam African-american, italian-american, german-american, mexican-american... mas quase não existem “american-americans”. O país da diversidade, vastidão e das oportunidades, não têm raízes próprias. Não que isso seja ruim. O que mais choca é a hipocrisia de se dizer “whatever-american” e achar que isso é sinal de status e te dá o direito de menosprezar os demais povos e nacionalidades. Achar que o dinheiro e a arrogância, aliados à ignorância são ingredientes indispensáveis para se ter uma vida tranqüila, nem que seja do ponto de vista material.


A começar pelos oficiais da imigração, muitos deles latinos, sempre que me apresento à imigração de qualquer aeroporto americano, me vem à cabeça a idéia de que “esse aí teve sorte (?) de conseguir o greencard e agora se vê no direito de usar de sua autoridade para menosprezar as pessoas... se bobear, há 10 anos atrás trabalhava ilegalmente em algum lava-rápido”.

De qualquer maneira, o Texas me deixou lições incríveis. Convivi com diferentes culturas, muito poucos texanos, mas bastante para aprender um pouquinho de cada parte do mundo. Australianos, alemães, franceses, turcos, ingleses, chineses, argentinos, venezuelanos, uns brasileiros que conheci por lá e também mexicanos.
O que é mais incrível naquele país, em termos de serviços e praticidade da vida, é o que eu chamo de “eficiência impessoal”. Ou seja, tudo funciona, mas desde que exista algum processo mecânico e uma forma padronizada de se executar as coisas.

Não importa que sejam seres humanos fazendo as coisas, eles sempre irão agir de forma robótica, irracional e padronizada. Em inúmeras ocasiões, ao utilizar serviços dos mais simples e banais possíveis, como abrir conta em banco, pagar conta de luz, ou pedir um molho diferente do que está no cardápio, eu ouvi a frase “é a primeira vez que alguém pede isso”. Como pode??? Será que no país das oportunidades e da diversidade, da liberdade de escolha, em mais de 200 anos de história recente, eu fui o único estrangeiro a abrir uma conta em um banco? Será que eu fui o único a pedir pra trocar o sorvete de morango por chocolate?? Difícil de acreditar. O que é mais provável é que a pessoa que está por trás desse serviço é “irracionalmente treinada” para fazer o que está no manual de procedimentos.

Dessa forma, tudo funciona, e “na média” todos entendem o que é pra ser feito, e a vida caminha. Se acontece algo diferente, você é a exceção, e daí nada funciona, tudo demora, simplesmente porque as pessoas são treinadas para executar, e não para pensar. Elas entendem o processo, e não o seu problema. Tudo se encaixa em uma lista de alternativas possíveis, tipo “disque 1 para A, disque 2 para B”.


Um exemplo interessante me ocorreu quando fui ao banco trocar um cheque (isso porque o banco demorou mais de 3 semanas para me dar um cartão magnético que me permitisse efetuar saques nos caixas eletrônicos, porque eu era “o primeiro estrangeiro que pediu um cartão de débito”). Ao entregar o cheque à atendente, a mesma me pediu para ver a carteira de motorista, que lá é bastante aceita como um documento de identificação, por conter foto e alguns dados pessoais. Expliquei para ela que ainda não possuía tal documento, e que tinha duas opções: a minha carteira de habilitação do Brasil, e o meu passaporte. Foi o suficiente para ela começar a recusar-se a trocar o meu cheque. Insistiu em ver a carteira de motorista, e eu insistia no passaporte, que é um documento internacionalmente aceito, tem a minha foto, assinatura e todos os dados pessoais. Após alguns minutos de argumentação, eu perguntei a ela “então quer dizer que eu preciso saber dirigir um carro para poder descontar um cheque?”. Aí ela entendeu que o que ela realmente precisava era confirmar a minha identidade, e confrontar com o cadastro do banco, mas jamais saber se eu sabia dirigir um carro....

Bom, depois veio o “sonho mexicano”.. sim, SONHO, e não pesadelo, porque é mais uma oportunidade que tenho de vivenciar algo diferente. O lado de cá da fronteira do Texas com o México é um mundo totalmente diferente, as pessoas são bastante mais amigáveis, você se entende muito melhor com todo mundo, e não é por causa do idioma, mas sim por uma questão de atitude.


Nota-se uma característica muito mais humana e menos “automática” nas pessoas. Aqui, nada funciona, ninguém respeita as leis de trânsito, tudo é ineficiente, mas mesmo assim a vida segue, todo mundo convive. Não que eu esteja pregando o caos ou dizendo que o México seja o modelo. Mas talvez seja um sinal de que desenvolvimento econômico não é determinante para que as pessoas se relacionem de uma forma melhor e mais humana.

Existe um certo grau de formalidade no linguajar dos mexicanos, algo que chega a ser irritante, quando não patético. Sem dúvida, uma característica de todos os países da América Latina, a de dizer as coisas nas entrelinhas, falar em metáforas, cheio de rodeios e fitas, enfim, muito mais hipócrita. A gente se acostuma a ver coisas como “Valide o seu ticket” ao invés de “Pague o seu ticket”, ou então “fulano não honrou seus compromissos” ao invés de “fulano não pagou a conta”. De qualquer forma, é uma característica cultural que precisa ser respeitada. Afinal, como eu já disse, apesar disso as coisas funcionam, as pessoas vivem, e a economia vai caminhando (não da melhor forma, mas vai).


Porém, uma coisa que ainda me custa muito a aceitar é o espírito de procrastinação dos mexicanos. Peguei um ódio quando alguém me diz que vai fazer alguma coisa “ahorita” (agorinha). “Ahorita” é a palavra-chave pra você saber que o que você precisa NÃO vai ser feito no tempo que você necessita, e se você realmente quer que seja feito, precisa pegar no pé da pessoa até que as coisas aconteçam. Já tive várias ocasiões nas quais discuti com as pessoas dizendo que, tecnicamente “ahorita” significa JÁ. Então, toda vez que escuto esta palavrinha, eu educadamente tento arrancar da pessoa um compromisso de que a coisa será feita, perguntando “a que horas podemos revisar isto?”.

Por falar em horários, também dá uma sensação de perda de tempo querer que as pessoas respeitem os horários. Nesse caso, que me desculpem os mexicanos, mas acho que é questão de respeito e não há característica cultural que justifique isso. Pelo menos no ambiente profissional, se você fala “reunião às 3 da tarde”, é tolerável que você se atrase 5 ou 10 minutos (afinal não somos alemães), mas achar que 3:00h e 4:45h dá na mesma, é demais. O que acaba acontecendo é que todos se desencontram, muitas vezes as reuniões não acontecem, e o tempo vai passando... (eu tive um chefe ex-militar nos EUA que dizia que é tecnicamente impossível você chegar no horário a uma reunião. Ou está adiantado, ou está atrasado, e ponto final...e acho que ele tem razão).

Se extrapolarmos esses fatos para todo um país, aos poucos pode-se entender algumas razões pelas quais um país é economicamente mais desenvolvido que outro. Pode ser idealismo meu, mas acredito que se cada um fizer a sua parte, todos têm a ganhar. Se todo mundo chegar no horário, a reunião acontece, as decisões são tomadas, as ações iniciadas, e sobra tempo para cada um continuar fazendo o que estava fazendo. E assim por diante.

Bom, acho que já está ficando burocrático e cansativo demais... (aliás burocracia no México é um tema que merece um texto exclusivo). O que eu mais pensava em retratar aqui é as grandes diferenças que existem (o que não é novidade), mas também compartilhar um pouco da oportunidade que tive de ver isto de perto. Realmente vale à pena e nos coloca a pensar o porquê de algumas coisas acontecerem, de qualquer que seja o lado da fronteira.

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